Vida sintética
A vida é fascinante!
Apesar dos avanços espantosos nas biociências (Biologia, Bioquímica, entre outras) nas últimas décadas, muitas são as perguntas ainda sem resposta sobre o funcionamento da vida, sobre a sua origem neste planeta azul.
E como é que os genes funcionam? Ainda pouco se sabe. Quando em 2003 a empresa Celera Genomics, liderada por J. Craig Venter, e o Consórcio Internacional do Projecto do Genoma Humano, liderado inicialmente por James Watson, divulgaram as suas cartografias do genoma do Homo sapiens sapiens, foi salientado por muitos cientistas que a tarefa hercúlea que acabara de ser concluída era só o princípio de um dilúvio de dúvidas, novas questões, novos desafios insuspeitos, algo genuinamente próprio da melhor ciência.
A sequenciação, em si própria, não respondeu imediatamente a questões como o que é que a sequência diz (faz), qual o seu papel na orquestra dos mecanismos celulares, qual a semântica da hiperligação existente entre frases em parágrafos (genes) e capítulos (cromossomas) diferentes e que aparentam estar envolvidos em instruções para uma tarefa particular. É que as instruções genómicas para a vida parecem não ser muito lineares. Existem inúmeros exemplos em que a expressão de uma determinada característica resulta da comunicação entre genes localizados em cromossomas distintos.
Ademais, há ainda a considerar, para a compreensão do funcionamento celular, a interacção de inúmeras moléculas e iões que banham e inundam as células, transportando ondas de ordens,informações vindas de outras células, muitas tendo origem e fim em órgãos diferentes nos seres multicelulares (o cérebro a controlar o movimento dos músculos com que o leitor folheia esta página, por exemplo). Muita da “habilidade” molecular em dar sentido a estas comunicações químicas está inscrita nos genes. Mas também é resultado das propriedades físico-químicas da interacção entre as biomoléculas.
Espreitar esta complexidade ilustra a dificuldade em recriarmos a vida em laboratório para melhor a compreendermos. E sintetizar uma célula a partir dos seus blocos constituintes é uma tarefa em mãos por investigadores de alguns laboratórios, dos quais se tem destacado o do Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos. Já em 2010, uma equipa de investigadores liderada por Craig Venter, naquele instituto, publicou na revista Science de 2 de Julho desse ano (http://www.sciencemag.org/cgi/content/abstract/science.1190719), que tinha conseguido reconstituir artificialmente e pela primeira vez, uma bactéria a partir das peças de “lego” bioquímicas. Nessa altura, os cientistas juntaram as unidades do ADN para montarem a sequência genética de uma bactéria tendo como ponto de partida o genoma da bactéria Mycoplasma mycoides. Foi o fruto, então, de 15 anos de bioengenharia laboriosa e deslumbrante, com um custo de 40 milhões de dólares.
Agora, seis anos depois, a equipa de Craig Venter deu mais um passo em frente: os cientistas reduziram para metade o ADN da bactéria sintetizada em 2010, numa tentativa de se aproximarem de um genoma mínimo. Qual é o genoma mínimo necessário para uma célula crescer e dividir-se? De facto, um dos objectivos dos autores foi o de sintetizar uma célula o mais simples possível para que pudessem determinar a função molecular e biológica de cada um dos genes nela incluídos. Os resultados foram publicados num artigo da revista Science de 25 de Março último (http://science.sciencemag.org/content/351/6280/aad6253).
Relembre-se que o genoma da nossa espécie tem cerca de 20 000 genes. O genoma designado por syn3.0, da bactéria agora sintetizada, tem só 473 genes. E este conjunto minimal de genes permite que as células cresçam e se dividam a cada três horas. Contudo, Craig Venter disse num comunicado da instituição que tem o seu nome que “32% dos genes essenciais para a vida desta célula têm uma função desconhecida, e muitos destes genes estão altamente conservados num grande número de espécies”.
Assim, uma das conclusões é a de que há ainda muito para saber sobre como funcionam os genes mesmo nas células mais simples. Este grau de desconhecimento tem consequências bioéticas: “Quando apenas compreendemos dois terços da célula mais simples que conseguimos obter, então provavelmente compreendemos apenas 1% do genoma humano”, defende Clyde Hutchison, outro autor do estudo.
Este foi mais um passo na longa caminhada que a ciência ainda tem a percorrer na compreensão de como funciona a vida!
António Piedade
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António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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