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Uma origem comum para as moléculas da vida

10 Abr 2015 - 14h01 - 4.703 caracteres

Perceber como é que a vida teve origem na Terra é um dos grandes desafios para a nossa inteligência e para a ciência.

As evidências fósseis mais antigas conhecidas para a existência de células na Terra têm 3,6 mil milhões de anos. Estas formas de vida unicelulares pertencem ao grupo designado por cianobactérias. Não quer dizer que a vida não existisse antes. Quer dizer que ou não deixou rastos, ou estes ainda não foram encontrados. Por exemplo, o geólogo dinamarquês Minik Rosing identificou “assinaturas químicas” indicadoras da existência de vida em rochas com mais de três mil e setecentos milhões de anos, encontradas na Gronelândia. Recorde-se que a idade estimada para o nosso planeta é de quatro mil e seiscentos milhões de anos. Assim a vida ter-se-á originado no nosso planeta numa janela temporal inferior a mil milhões de anos. Mas como?

Um dos momentos decisivos para a evolução da vida terá sido a formação de uma membrana suficientemente estável que delimitasse e separasse um meio interior do meio externo envolvente. Esta membrana teria, entre outras propriedades, a capacidade de permitir a entrada selectiva de matéria-prima (alimentos), assim como a saída dos produtos das reacções internas cuja presença no interior não era “desejável”. Mas para se formar esta proto-célula terá sido necessária a presença dos compostos químicos essenciais para a sua edificação: lípidos (para a membrana), aminoácidos (para as proteínas), ribonucleótidos (para a formação dos ácidos nucleicos como o ADN e ARN), entre outros.

Mas como é que surgiram estes compostos? Desde os estudos pioneiros do bioquímico russo Alexandre Oparin várias hipóteses e teorias têm sido propostas para a origem dos blocos estruturais da vida. Três experiências têm dominado a investigação química sobre a origem da vida: a experiência famosa de Miller – Urey demonstrou como é que alguns aminoácidos podem ser sintetizados numa atmosfera redutora sujeita a descargas eléctricas; a reacção de formose de Butlerow produziu misturas complexas de açúcares a partir da polimerização de formaldeído; e o trabalho de Oró demostrou como é que a nucleobase adenina (um componente do ADN e ARN) pode ser produzida quando uma mistura de ácido cianídrico e amónia é aquecida em solução aquosa. Mas nenhuma destas experiências explica como é que as diversas substâncias necessárias à vida podem ser sintetizadas simultaneamente e no ambiente da Terra primitiva.

No final de Março, foi publicado na revista Nature Chemistry um artigo (B.H. Patel et al. Nature Chemistry, (2015) 7, 301-307) que representa uma aproximação mais completa para o ambiente geoquímico que poderá ter constituído a antecâmara da vida. Neste artigo, uma equipa de cientistas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, liderada pelo inglês John Sutherland, demostra como é possível obter os blocos moleculares da vida a partir de uma simples mistura de ácido cianídrico (HCN) e ácido sulfídrico (H2S), compostos verosimilmente presentes abundantemente na atmosfera da Terra primeva. Sob a acção dos raios UV provenientes da radiação solar e com a intervenção de iões de cobre como catalisadores inorgânicos, os cientistas propõem uma série de reações químicas num mesmo ambiente geoquímico capaz de produzir os precursores químicos do ARN, das proteínas e dos lípidos, moléculas essenciais para o aparecimento das primeiras células.

Este trabalho agora publicado, apesar de não poder provar a forma como a vida surgiu no nosso planeta, é um contributo experimental extraordinário para um cenário geoquímico provável para o palco em que as moléculas da vida se encontraram pela primeira vez.

Link para o artigo original: http://www.nature.com.sci-hub.org/nchem/journal/v7/n4/full/nchem.2202.html?hc_location=ufi

 

António Piedade


© 2015 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


António Piedade

António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.


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