Antes de um gesto
No dia-a-dia fazemos inúmeros movimentos de uma forma quase inconsciente. Andar, correr, estender o braço para apertar a mão de alguém que nos cumprimenta, são movimentos que fazem parte de um reportório neuromuscular que aprendemos e que tornámos de certa forma automáticos e “inconscientes”.
Compreender como é que o nosso cérebro coordena todos os músculos que estão envolvidos nesses movimentos e os integra, num aparente “esforço consciente”, com o que os nossos olhos veem e os sons que os nossos ouvidos captam à nossa volta, entre outros estímulos, não tem só um interesse científico fundamental (o de saber porque como e funciona), mas também permite entender o que está da facto envolvido em doenças neurodegenerativas que afectam o movimento, como sejam a doença de Parkinson e a coreia de Huntington.
Ou seja, compreender que partes do cérebro e que células neuronais estão envolvidas na decisão inconsciente de levantar um braço, pode permitir encontrar novas estratégias terapêuticas para tratar ou minorar pelo menos os sintomas daquelas doenças incapacitantes.
Sabia-se que dois circuitos neuronais diferentes que partem dos gânglios da base (um grupo de núcleos de neurónios localizados numa região profunda do encéfalo) afectavam a decisão para iniciar um movimento. Um dos circuitos designa-se por “directo” e o outro, por ter outras ramificações chama-se “indirecto”. A doença de Parkinson, que inibe movimentos, e a coreia de Huntington, que causa descontrolo nos movimentos, afectam estes dois circuitos. Por isso, os neurocientistas puseram como hipótese teória que o circuito directo servia para activar o movimento e o indirecto servia para o inibir.
Mas, uma investigação em que participou o neurocientista português Rui Costa (que trabalha na Fundação Champalimaud, em Lisboa) relatada num artigo que acaba de ser publicado na edição online da revista Nature (doi:10.1038/nature11846) mostra que afinal o comando para começar uma acção é mais complexo do que se pensava.
Rui Costa e colegas descobriram que a decisão para fazer um movimento simples, como levantar o braço, depende de dois circuitos neuronais diferentes e não de um só.
Segundo o investigador português “o conhecimento científico até ao momento indicava que o circuito directo promovia o movimento e o circuito indirecto inibia o movimento. Portanto no caso de Parkinson seria um excesso de actividade do circuito indirecto o que causava a falta do movimento”.
Neste trabalho, considerado muito elegante do ponto de vista laboratorial e científico num editorial da prestigiada revista Nature, os investigadores introduziram proteínas florescentes e fibras ópticas em ratinhos de laboratório, o que lhes permitiu visualizar directamente a actividade dos gânglios da base, o que nunca tinha sido feito.
Esta monitorização permitiu “ver” e perceber que “esses dois circuitos não funcionavam de forma oposta, mas mais de uma forma coordenada. Quando há movimento, ambos os circuitos estão mais activos e portanto o que indica é que se descobrirmos formas de manipular estes circuitos para estarem activos de uma forma coordenada podemos melhorar problemas de movimento, como Parkinson ou Huntington”, explicou Rui Costa.
Estes resultados podem ajudar “a melhorar o tratamento dos sintomas das doenças neuronais” diz o investigador e acrescenta que “o próximo passo é tentar manipular a actividade destes circuitos, de forma a controlar o movimento.”
Estamos assim mais próximos de perceber a orquestração neuronal que antecede um gesto.
António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
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António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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