Rã congelada
O domínio do fogo permitiu amenizar os invernos glaciares dos nossos antepassados e forjar sucessivas revoluções tecnológicas. O domínio do frio, mais recente, permitiu o armazenamento mais duradouro de alimentos e acalentou a ideia de preservar células, espermatozóides, embriões, órgãos e mesmo corpos inteiros (pessoas e animais de estimação).
Este uso do frio para cristalizar um estado presente e “criotransportá-lo” para um futuro mais resolvente ou até a uma qualquer necessidade própria (por exemplo no caso das células estaminais) é, como dissemos, tecnologia do frio que começou a ser utilizada em meados do século XX, fruto do engenho tecnológico humano que em parte só foi possível, curiosamente, pela nossa ancestral mestria em fundir, caldear e forjar metais, ou seja pela nossa habilidade em dominar o fogo!
Domínio do fogo que nos permitiu passar o inverno sem hibernar e, assim activos, forjar pensamentos, caldear memórias, pintar murais de cavernas à espera que os “deuses” devolvessem a esperança sobre a terra em torrentes de vida primaveris.
A força motriz da selecção natural proporcionou a outros animais, plantas, microrganismos o ajuste a estratégias diferentes para fazer face aos infernos gelados. Alguns, como o urso polar ou o esquilo, hibernam, reduzindo a metabolismo basal à letargia necessária para sobreviver ao inverno, “queimando” as gorduras armazenadas sob a pele isolante.
Algumas bactérias alteram a composição lipídica da membrana plasmática para manterem uma mesma fluidez funcional a temperaturas inferiores.
Alguns insectos aumentam a concentração intracelular e nos fluidos corporais em anticongelantes naturais como o glicerol e o sorbitol, impedindo a formação de cristais de gelo cujas extremidades são fatais para a integridade das células e tecidos. A beleza dilacerante de um cristal de gelo não é tesouro compatível com a integridade celular. É preciso evitar a sua formação para assegurar a vida para além do frio!
Mas a pressão para sobreviver é capaz de soluções espantosas e a que descrevemos a seguir é disso bom exemplo.
Existem pelo menos quatro espécies de rãs - Rana sylvatica, Hyla crucifer, Hyla versicolor e Pseudacris triseriata - que podem sobreviver durante dias ou semanas com cerca de 65% da sua água corporal congelada a temperaturas de -16 ºC! É pois deixando-se congelar, que estas rãs ficam gelidamente inertes por entre folhas e ramos também gelados na tecelagem invernal. Com a actividade metabólica reduzida para cerca de 1%, trespassam os rigores invernais à espera que a translação terráquea devolva a primavera e, então, juntem o seu coaxar às coreografias de acasalamento no resplandecente palco primaveril.
A explicação para este fenómeno da vida reside num açúcar: a glicose. Sim, o mesmo açúcar que obtemos da sacarose com que adoça esse café quente, o mesmo açúcar que fornece energia a todas as nossas células, principal e principescamente os neurónios do nosso cérebro…
Mas voltemos às rãs. As rãs daquelas espécies acumulam uns “megaglicémicos” 4500 mg/dl de glicose (o normal é 50-100 mg/dl) quando pressentem que tudo à sua volta está a congelar e assim evitam a formação dos fatais cristais de gelo. É deste estado tipo “geleia de rã congelada” que acordam ao som dos primeiros acordes primaveris. Podemos dizer que o seu acordar é muito doce e que o excesso de açúcar, garante da sua sobrevivência gelada, é então utilizado para desentorpecer o corpo, dar um novo salto e desfrutar uma nova Primavera.
António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
Fontes de Referência:
K.B. Storey and J.M. Storey, Lifestyles of the Cold and Frozen, New York Academy of Sciences, 1999, 39 (3), 32-37.
http://http-server.carleton.ca/~kbstorey/reviews.htm (lista de artigos de K.B. Storey, Bioquímico especialista em hipometabolismos e organismos extremófilos).
Videos no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=UvCdOXG2rPo&feature=related
Legenda da figura:
Rana sylvatica – Vive em várias regiões acima do círculo polar árctico.
© 2012 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva
António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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