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O fim do Telescópio Espacial Kepler

03 Nov 2018 - 19h50 - 5.829 caracteres

Há 250 mil anos, numa noite de breu intensamente estrelado, um primeiro Homo sapiens comtemplava a abóbada celeste, como habitualmente fazia desde que se conhecia. A contemplação estelar intensificava a sua consciência primeva e refractava os seus sonhos. Naquela noite, a continuada consciência da regularidade do movimento dos astros, fruto de anos de observações repetidas, iluminou o seu pensamento imagético: ainda sem palavras, teve consciência de que era o centro de tudo o que conhecia. Ou seja, para além de viver no Jardim do Éden, vislumbrou a certeza de que era o centro do Universo, diríamos hoje.

Esta certeza antropocêntrica da centralidade humana no Universo, fruto da nossa miopia cósmica, perdurou durante centenas de milhares de anos e edificou cosmogonias, mitos e religiões, fortificadas por diversas civilizações humanas.

Apesar do grego Aristarco de Samos (310 — 230 a.C.) ter sugerido, tanto quanto se sabe, que a Terra deveria girar à volta do Sol, a centralidade da Terra perdurou inabalavelmente até ao século XVI da nossa era. Foi Nicolau Copérnico, baseado em milhares de observações astronómicas a olho nu, quem propôs a então herege Teoria Heliocêntrica: era o Sol o centro do Universo e todos os planetas então conhecidos orbitavam em seu redor. Ou seja: o Sol era o centro do Sistema Solar.

Foi com Galileu Galilei (1564 - 1642) - com a sua nova e metódica destreza instrumental e científica em observar o céu com o novíssimo telescópio, que ele próprio melhorou adequando-o com o que a técnica de então permitia para a melhor observação astronómica – que o cérebro humano conclui, perante as provas experimentais observáveis por qualquer um, que a hipótese de Copérnico estava certa, que o Sol tinha de ser o centro da observável “máquina do mundo”. As quatro luas de Júpiter e as fases do planeta Vénus, que Galileu observa em 1610, assim o sustentavam.

Devemos ao astrónomo francês Charles Messier (1730 – 1817) o mapeamento intensivo de corpos celestes só visíveis através do telescópio, o que deu origem ao designado, em sua honra, por catálogo Messier de “objectos” do céu profundo. Mas, apesar de ter registado no seu catálogo nebulosas, aglomerado estelares e aquilo que hoje sabemos se tratarem de galáxias, Messier e os seus contemporâneos continuavam a considerar o Sol como o centro do Universo humano.

Esta centralidade solar começa a ser erodida com o brilho explorado da Via Láctea. Mas sublinhe-se que até ao princípio do século XX a Via Láctea era a única galáxia entendida como tal. Tinha-se como certo que tudo o que se podia observar, com os melhores telescópios de então, cabia dentro da Via Láctea. Por outras vistas, nada se julgava ver para além da Via Láctea, o mesmo é dizer que o Universo se resumia à nossa galáxia.

Foi Edwin Hubble (1889 — 1953) quem descobriu, em 1923, com recurso ao telescópio Hooker no Observatório de Monte Wilson, nos Estados Unidos da América, que o que então se julgava ser uma nebulosa interina da Via Láctea se tratava, de facto, de uma “nova” galáxia, a Andrómeda, situada muito para além dos limites da nossa galáxia. Descobria também que essa e outras galáxias logo depois identificadas se afastavam umas das outras com velocidades proporcionais às distâncias que as separavam. O “novo” e estonteante Universo estava em expansão. A Via Láctea era uma entre muitas e muitas outras galáxias e não era de maneira nenhuma o centro do Universo! A mente do Homo sapiens expandia-se com assombro cósmico.

E, na década de 90 do século XX, com o fantástico desenvolvimento técnico na sensibilidade dos telescópios mais modernos, foi possível dectectar “pequeníssimas” oscilações na posição das estrelas e variações periódicas dos seus brilhos: descobria-se e confirmava-se a existência de planetas extrassolares, ou exoplanetas, novos mundos a orbitarem as estrelas celestes. Desde então, já foram detectados mais de três mil exoplanetas e estima-se que entre 30 a 50 por cento das estrelas visíveis sejam orbitadas por planetas.

Um telescópio em particular, o telescópio espacial Kepler, da NASA, contribui para a descoberta da maioria desses exoplanetas, em particular de vários planetas rochosos com dimensões similares às da Terra e a distâncias das suas estrelas que poderão permitir a existência de água no estado líquido: orbitam o que se designa, com muita esperança, por “zona de habitabilidade”!

O telescópio espacial Kepler, que começou a explorar a luz das estrelas em 2009, terminou esta semana a sua funcionalidade por o seu combustível ter chegado ao fim. Mas a NASA adiantou que há ainda muito mais a descobrir com os dados ainda não estudados que o Kepler captou e enviou para a Terra. São ainda muitos os mundos a desvendar neste Universo assombroso…

 

António Piedade


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António Piedade

António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.


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