Registo | Contactos

«Casos como o de OJ Simpson e o 11 de Setembro forçaram a melhorar a análise de ADN nos EUA»

06 Ago 2018 - 15h10 - 12.516 caracteres

Entrevista a Joana Antunes, doutoranda em Bioquímica na Florida International University em Miami.

 

«Para mim é gratificante ter a oportunidade de contribuir na tarefa de resolver um crime, usando o conhecimento científico para melhorar os métodos disponíveis, o que por sua vez contribui para uma menor probabilidade de erros na análise de provas e maior justiça.»

 

Entrevista:

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

 

Estou a terminar o doutoramento em Bioquímica na Florida International University (FIU) em Miami. O meu projecto de investigação é na área de ciências forenses. Mais concretamente, investiguei como identificar fluidos biológicos deixados na cena do crime usando ADN.

Os métodos que se usam em laboratórios de ciências forenses hoje em dia para identificar fluidos biológicos não permitem uma discriminação a 100% de qual o fluido corporal deixado na cena do crime. Ou seja, dão indicação se a amostra é saliva ou suor ou outro fluido, mas não garantem a 100%. Em certas investigações é importante saber que tipo de fluido está presente, não chega saber que o fluido pertence (ou não) ao suspeito. Por exemplo, no caso de suspeita de abuso sexual a uma criança por parte de um elemento da família, a presença de ADN da pessoa suspeita é esperada nas roupas e corpo da criança porque o ADN pode ser transferido através de um simples abraço ou simplesmente por ajudar a criança a vestir-se. Desta forma, a presença do ADN do suspeito não indica que o crime foi cometido pelo suspeito. No entanto, se conseguirmos demonstrar com 100% de certeza (ou próximo de 100%) que o ADN na criança é de sémen (por exemplo) teremos uma indicação forte de que realmente houve abuso sexual. Este é o exemplo mais simples de visualizar, mas há outros casos em que a investigação do crime poderá beneficiar enormemente da identificação do fluido corporal.

Nos últimos 20 anos tem-se feito muita pesquisa nesta área. No entanto, a maioria dessa pesquisa tem como objectivo usar ARN ou proteínas. O método proposto pelo grupo de investigação a que pertenço consiste em estudar padrões de metilação de ADN. A metilação de ADN consiste na presença de grupos metilo (-CH3) na cadeia de ADN. Esses grupos metilo determinam que partes do ADN são expressos na célula e convertidos em proteínas. Estudar a metilação de ADN é diferente de estudar a sequência de ADN que é o que é feito para comparar ADN de um suspeito com o ADN encontrado na cena do crime. Se pensarmos num colar de pedras, cada pedra tem a sua cor (cada pedra corresponde a uma base azotada do ADN, ou seja, guanina, adenina, timina e citosina). Quando analisamos a cor da pedra, não estamos a olhar para o facto de que algumas das pedras de cor vermelha (por exemplo) têm um brilhante acoplado (grupo metilo). Quer o brilhante esteja lá ou não, a pedra é vermelha e é isso que interessa para identificar o ADN como sendo de um suspeito.  Quando estudamos metilação, estamos especificamente a olhar para quantas pedras vermelhas tem um brilhante acoplado. Isto é importante porque sabemos de antemão que se o ADN vem de saliva teremos ‘x’ número de brilhantes em ‘y’ número de pedras vermelhas numa zona específica do colar. Se o ADN é de suor ou sémen ou outro fluido corporal, então haverá mais ou menos brilhantes no mesmo número de pedras vermelhas na mesma zona do colar. A nossa investigação baseia-se na hipótese de que faz mais sentido estudar metilação de ADN em vez de proteínas ou ARN, já que a mesma amostra de ADN obtida na cena do crime pode ter duas finalidades - comparar com o ADN do suspeito e identificação do fluido biológico. Assim poupa-se na quantidade de amostra(s) usada(s), o que é muito importante em ciências forenses já que muitas vezes essa quantidade é extremamente limitada.

 

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

 

Pessoalmente sempre achei fascinante a investigação de crimes. Personagens como Hercule Poirot e Sherlock Holmes fizeram parte do meu imaginário quando criança. As ciências forenses permitem a aplicação de métodos científicos, muitas vezes métodos inovadores, na investigação criminal.

Além da novidade, o tempo que demora para que um método novo seja adoptado em laboratórios forenses que lidam com amostras recolhidas em cenas de crimes é muito mais curto do que em outros tipos de investigação em bioquímica (por exemplo, na indústria farmacêutica pode demorar mais de 20 anos até que um produto investigado hoje esteja disponível no mercado para as pessoas que dele necessitam). Para mim pessoalmente é gratificante ter a oportunidade de contribuir na tarefa de resolver um crime, usando o conhecimento científico para melhorar os métodos disponíveis, o que por sua vez contribui para uma menor probabilidade de erros na análise de provas e maior justiça. Além disso, os métodos a serem usados estão constantemente a quebrar limites de detecção. Como tipicamente as amostras recolhidas na cena de um crime são diminutas (em quantidade e qualidade de material disponível), os métodos têm de ser constantemente melhorados.

 

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

 

O motivo principal foi a disponibilidade de recursos (bolsas académicas) e a quantidade de grupos de investigação forense que existem nos Estados Unidos. Apesar de existirem períodos de menor disponibilidade financeira esporadicamente, na generalidade das situações o governo dos EUA tem um orçamento significativo para pesquisa de novos métodos em ciências forenses. Historicamente casos como o de OJ Simpson, o furacão Katrina, e o ataque ao World Trade Center constituíram eventos importantes que forçaram as autoridades a melhorar os métodos de análise de ADN nos EUA. Deste modo, a quantidade de recursos disponíveis é maior do que em Portugal, tal como o número de centros de investigação universitária e privada, o que em minha opinião, ajuda a desenvolver a investigação científica.

 

Quanto ao factor inesperado, após ter sido aceite na FIU, vários colegas em Portugal mencionaram que a competição nas universidades americanas para publicar artigos científicos é enorme. Avisaram-me para que eu estivesse preparada para a eventualidade de sofrer atitudes menos nobres por parte dos meus futuros colegas. No entanto, ao chegar a FIU e ao conhecer o meu P.I. (Principal Investigator, que é o mentor do meu projecto) e os meus colegas, rapidamente me apercebi que não era esse o caso. Todo o grupo beneficiava de uma atmosfera relaxada, com um mínimo de regras de senso comum ao usar os espaços e materiais partilhados por todos no laboratório. O P.I., o Doutor Bruce McCord, propositadamente faculta um horário de trabalho flexível, com o objectivo de nos ensinar a criar as nossas próprias prioridades e a encontrar um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, lições extremamente importantes na vida profissional que encontraremos depois do doutoramento.

 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

 

Desde que saí de Portugal que não tenho acompanhado muito o que se tem passado na ciência em Portugal. Sei que há excelentes cientistas que voltaram para Portugal após um período de estudos e/ou carreiras no estrangeiro e sinceramente espero no futuro pertencer a esse grupo.

Em minha opinião, o que beneficiaria imenso a investigação científica em Portugal seria a disponibilidade de mais recursos financeiros por parte de empresas privadas, por exemplo. Não quero estar constantemente a falar de dinheiro, no entanto, é uma realidade inegável que é um bem necessário ao desenvolvimento científico. Não acho, no entanto, que deva ser da responsabilidade exclusiva do governo financiar a investigação. Há cientistas em Portugal extremamente inteligentes, e mais importante ainda, extremamente dedicados aos seus projectos. Se pudéssemos ‘vender’ essa dedicação a empresas privadas estrangeiras, conseguiríamos não só financiar projectos de investigação (incluindo doutoramentos e mestrados), mas também construir carreiras para aqueles que terminam o doutoramento e não pretendem continuar na via académica.

Talvez isto seja uma utopia, no entanto, acho que os cientistas portugueses têm essa capacidade. Tanto quanto sei, vários grupos de investigação em Portugal têm concorrido a bolsas europeias com grande sucesso, assegurando financiamento por vários anos. Esse tipo de iniciativas são de louvar. Talvez seja tempo de começarmos também a explorar outros ‘mercados’, como por exemplo o norte-americano (embora esteja ciente que é um mercado um pouco fechado, por vezes). Aproveito para deixar a nota de que a FIU tipicamente tem bolsas de doutoramento para o departamento de quimica e bioquimica, talvez isto interesse a alguém. O director do programa de química, Dr. Watson Lees, possui toda a informação necessária sobre como concorrer.

 

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

 

Tive conhecimento do GPS há relativamente pouco tempo, mas desde o início achei uma excelente ideia e decidi apoiar e fazer parte da iniciativa. Tal como já mencionei, os cientistas portugueses possuem um grau de conhecimento, iniciativa e dedicação impressionante e plataformas como o GPS permitem a troca de experiências entre todos. Na minha opinião o GPS pode ser uma peça fulcral para constituir uma plataforma de ‘network’ na qual cientistas que voltem ao país (e claro também os que continuem no estrangeiro) possam trazer conhecimento, recursos, e contactos para posteriormente alargar a rede de apoio a ciência em Portugal.

Hoje em dia a quantidade de informação e a facilidade de troca de bens e serviços a nível global é imenso. Plataformas como o GPS possibilitam uma maior visibilidade e disponibilidade de serviços entre cientistas portugueses em todo o mundo. Faz todo o sentido e de facto havia uma necessidade enorme de construir uma rede global onde a comunicação fosse facilitada, porque cada vez menos faz sentido continuar no nosso cantinho, isolados de todos. Cada vez mais importa mostrar ao mundo o que nós, os cientistas portugueses, somos capazes de fazer.

 

Consulte o perfil de Joana Antunes no GPS.

GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

GPS/Fundação Francisco Manuel dos Santos


© 2018 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


GPS / Fundação Francisco Manuel dos Santos

Veja outros artigos deste/a autor/a.
Escreva ao autor deste texto

Ficheiros para download Jornais que já efectuaram download deste artigo