«Creio que os cientistas portugueses foram vítimas do seu próprio sucesso»
Por: GPS / Fundação Francisco Manuel dos Santos
Doutorado pela Universidade de Coimbra, Nuno de Sá Teixeira estuda a percepção visual do espaço e movimento, a percepção do tempo e da gravidade, e a física intuitiva. É bolseiro de pós-doutoramento no Centro di Biomedicina Spaziale, em Roma. Nuno de Sá Teixeira nasceu em Vila Franca de Xira, mas desde os 3 anos viveu e estudou em Pombal antes de ingressar na Universidade de Coimbra. Esta entrevista foi realizada no âmbito do Global Portuguese Scientists (GPS) - um site onde estão registados os cientistas portugueses que desenvolvem investigação por todo o mundo.
Pode descrever (para nós, leigos) de forma sucinta o que faz profissionalmente?
Faço investigação científica em Psicologia Experimental, mais especificamente sobre percepção visual do espaço e do movimento (como é que apreendemos visualmente o espaço ao nosso redor e que mecanismos perceptivos nos permitem perceber o movimento de tal forma que possamos interagir com o mundo físico), tema sobre o qual fiz o meu doutoramento. Para melhor transmitir o que significa exactamente isto, pode ser útil abrir aqui um parêntesis: de uma forma global, creio que possuir uma noção sobre uma área científica, para a população geral, depende da medida na qual essa área tem (ou teve) um impacto visível na vida quotidiana. Por exemplo, Feynman recorda-nos que, antes da Segunda Guerra Mundial e o desenvolvimento da bomba atómica, poucas pessoas tinham uma ideia clara do que fazia um físico. No caso da Psicologia Experimental, isto continua certamente a ser verdade, com a agravante de que uma qualquer pessoa irá remeter o termo para o seu entendimento do que é a Psicologia, na sua forma mais observável e aplicada – a Psicologia Clínica. Na verdade, e historicamente, a Psicologia Experimental antecede em várias décadas as facetas mais visíveis da Psicologia, tendo na sua origem os trabalhos inaugurais de alguns físicos e fisiólogos, no final do século XIX, sobre temas que, até então, haviam sido tratados essencialmente pela Filosofia. O estudo e a compreensão do sistema visual (como apreendemos visualmente o mundo físico à nossa volta, como obtemos uma compreensão, através dos nossos sentidos, desse mundo e como isso guia e estrutura as nossas acções) tem-se mantido, desde então, um dos tópicos centrais da Psicologia Experimental. Mais recentemente, e graças à crescente divulgação científica tanto das Ciências Cognitivas como das Neurociências (ambas, a rigor, áreas altamente abrangentes que abarcam várias especialidades), inúmeros fenómenos e temas abordados pela Psicologia Experimental (ilusões ópticas, por exemplo, são uma presença regular, ainda que sub-desenvolvida, nas redes sociais) têm vindo a ter uma maior exposição ao público geral.
Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?
De uma forma muito geral, creio que o mais fascinante nesta área é o equilíbrio entre a profundidade e intemporalidade das questões que lhe subjazem e a inspiram e a possibilidade de as abordar de um ponto de vista empírico e metodologicamente sofisticado. A capacidade de percepcionar algumas dimensões físicas do mundo que habitamos, de extrairmos significado dessas dimensões e de regularmos as nossas acções e comportamento em conformidade atravessa virtualmente qualquer momento da nossa existência: desde o acto de ver, reconhecer e manipular objectos, passando pela capacidade de identificar pessoas, locais, obstáculos ou abrigos, até identificar e reconhecer significados em padrões num conjunto de dados ou instrumento científico (não é por acaso que Helmholtz, no seu clássico tratado de fisiologia óptica, de 1866, inclui um capítulo sobre percepção visual em instrumentos como o microscópio e o telescópio), etc. Especificando um pouco mais o meu próprio trabalho, tenho essencialmente investigado a forma como o sistema visual humano tira partido de regularidades físicas, como a força gravitacional, para estruturar a percepção do espaço e antecipar trajectórias de objectos em movimento que, por sua vez, suportam o planeamento motor. Apesar de aparentemente específico, este é um tópico que informa questões mais gerais acerca da forma como um humano e o seu meio físico envolvente interagem entre si. Traduz-se e contribui também para questões tão diversas como “porque é que um astronauta experiencia regularmente ilusões de inversão do contexto à sua volta (e como isso se liga ao ‘enjoo espacial’)?”; ou “o cérebro humano representa e utiliza leis físicas?”; ou ainda “como pode um guarda-redes ou um batedor de baseball interceptar uma bola que se desloca a uma velocidade superior àquela com que as células nervosas transmitem informação?”.
Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?
Durante a minha carreira científica, esta é a minha terceira posição como investigador num país estrangeiro. Para além de alguns meses passados em França durante o meu doutoramento, trabalhei ao longo de um ano na Alemanha. Seguiu-se um período de três anos em Portugal, estando agora prestes a completar o primeiro ano como investigador em Itália. Julgo que para qualquer cientista é relevante e importante desenvolver trabalhos noutros laboratórios e instituições, não só para expandir os seus contactos profissionais e rede científica, mas também para o desenvolvimento de outras competências técnicas e teóricas. Importará notar aqui que frequentemente um qualquer laboratório científico tende a crescer em torno de alguns poucos vectores de investigação e dificilmente irá abranger a totalidade de uma área científica. Isto repercute-se, por exemplo, ao nível dos fenómenos estudados e, consequentemente, dos equipamentos disponíveis para o estudo desses fenómenos, nas práticas experimentais e de divulgação de resultados. Trabalhar noutros laboratórios permite assim a aquisição de competências adicionais, altamente relevante para uma carreira científica. Havendo necessariamente uma maior heterogeneidade quando se considera um contexto mais alargado do que o nacional, vêem-se também multiplicadas as possibilidades de trabalhar com equipas distintas. Obviamente, qualquer cientista eventualmente ambiciona ocupar uma posição mais estável e permanente, por exemplo numa Universidade. Num contexto económico em que essas posições sejam escassas, é quase inevitável uma sensação de “falta de alternativas”. Julgo que qualquer investigador, mais cedo ou mais tarde tenta balançar e gerir este dois extremos: ir para o estrangeiro para desenvolver competências científicas ou ir para o estrangeiro por ausência de alternativas estáveis no seu país de origem. No meu caso, este é um balanço que se começa a tornar cada vez mais premente e que, honestamente, ainda está por ser feito.
Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?
Creio que alguns aspectos da minha carreira, como aquela de qualquer outro investigador da minha geração (seja ou não de áreas afins), espelha, em grande medida, a evolução recente do panorama científico em Portugal. A minha formação inicial foi feita num contexto em que havia apoio e incentivo à investigação científica: os financiamentos, ainda que não necessariamente extensos, possibilitavam a aquisição e manutenção de equipamentos laboratoriais e a formação científica avançada, os quais, por sua vez, se repercutiam numa crescente visibilidade científica (por exemplo, com publicações em revistas internacionais de referência). Não senti, durante o meu doutoramento, qualquer obstáculo à realização do meu trabalho, tendo tido acesso a infra-estruturas e meios técnicos e científicos adequados para a prossecução bem sucedida dos meus objectivos. Pelas razões que apontei acima, trabalhar no estrangeiro, ainda que apenas durante algum tempo, sempre foi um passo não só esperado como desejado e congruente com o desenvolvimento científico do país. Importa enfatizar: a crescente circulação internacional de cientistas portugueses atesta a maturidade do panorama científico nacional (o mesmo pode ser dito, ipsis verbis, para qualquer outro país). Contudo, e ainda durante o meu doutoramento, começaram a surgir as primeiras indicações de que o crescimento científico em Portugal poderia estar a ficar ameaçado e eventualmente, com a crise económica, a regredir nalguns aspectos. Conheço investigadores altamente promissores que ou não conseguiram fazer o doutoramento, por falta de apoios financeiros, ou que o terminaram com custos pessoais ou ainda que o viram adiado. Um número significativo de cientistas recém-doutorados começou também a encarar a possibilidade de emigrar não como uma oportunidade de crescimento mas como uma fuga à falta de alternativas de carreira plausíveis e estáveis. Num certo sentido,creio que os cientistas portugueses foram vítimas do seu próprio sucesso – a ciência em Portugal amadureceu, cresceu visivelmente e mostrou-se altamente competitiva no contexto internacional, a um ponto em que o “aperto” económico veio a ser sentido como um “estrangulamento”. Felizmente, os cientistas tendem a ser apaixonados pelo seu trabalho e por isso persistem, seja em Portugal, seja no estrangeiro. Hoje em dia Portugal dispõe de uma importante massa de recursos humanos científicos que pode e deve ser aproveitada.
Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?
A possibilidade de ter acesso à distribuição geográfica dos investigadores portugueses, seja no geral, seja por área, é uma das ferramentas do GPS que me parecem mais pertinentes – não tanto para os próprios investigadores mas sim para o público em geral. Até agora era relativamente difícil ter uma noção clara da circulação internacional dos cientistas portugueses. Claro, a pertinência desta ferramenta depende criticamente da adesão dos investigadores à plataforma. Para os próprios cientistas, o aspecto mais interessante talvez seja a possibilidade de encontrar afinidades científicas com outros investigadores – a vertente social sempre foi, indubitavelmente, uma das mais relevantes para a ciência, que não existe sem uma comunidade. Finalmente, e a título de sugestão, penso que o GPS pode vir a facultar uma plataforma na qual os cientistas portugueses possam divulgar o seu trabalho ao público. Por exemplo, com a inclusão de uma secção pessoal na qual possam listar publicações relevantes acompanhadas de uma breve síntese para “não especialistas”. Acredito que isso poderia dinamizar a divulgação científica em Portugal, servindo o GPS tanto como uma fonte privilegiada acerca dos avanços científicos (e.g., a ser usada por jornalistas ou público em geral) como um estímulo para os próprios cientistas tomarem a responsabilidade da difusão do conhecimento que geram.
Consulte o perfil de Nuno de Sá Teixeira no GPS-Global Portuguese Scientists.
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