Tocar no cometa
Os cometas são anteriores à formação do nosso planeta Terra. Durante milhares de milhões de anos, antes da nossa espécie se erguer para o espaço, os cometas embelezaram os céus. Mais tarde também despertaram a curiosidade que nos iria conduzir à ciência.
Os cometas, como escreveu Carl Sagan num livro lindíssimo sobre estes astros (que a Gradiva reeditou recentemente entre nós), “são as neves de outrora, os despojos primitivos da criação do sistema solar, gelos expectantes nas trevas interestelares”.
Durante milhares de anos, na escuridão dos céus e do nosso conhecimento, a visita dos cometas incendiou a retina e milhões de sinapses neuronais, o que fertilizou a imaginação humana, criou mitos, previu a sorte ou o infortúnio, anunciou o nascimento ou a morte de imperadores, foi expressão de um juízo divino a guiar os nossos destinos.
A observação sistemática da abóbada deslumbrante permitiu registar uma regularidade frequente no aparecimento dos cometas. Progressivamente, e com ciência, compreendemos melhor a natureza destes astros. O conhecimento substituiu o medo, o terror deu lugar a um outro deslumbramento.
Passámos a esperar o regresso destes corpos gelados, relíquias do passado que é a nossa história, fósseis astronómicos que nos podem ensinar como é que o sistema solar se gerou. As nossas teorias científicas precisam de ser comprovadas experimentalmente. E, assim que a ciência e a tecnologia permitiram, passámos a enviar sondas para os observar o mais próximo possível e para os analisarmos experimentalmente.
Agora, estamos na véspera de assistirmos a mais uma epopeica realização da inteligência humana: já não esperamos que um cometa nos visite, pelo contrário, vamos ao seu encontro para o compreender intimamente.
No próximo dia 12 de novembro, um pequeno robô cúbico, designado por Philae, com não mais de 100 kg, vai pousar sobre um local meticulosamente escolhido do cometa 67P/Churiumov-Gerasimenko. Vamos poder assistir à primeira “acometagem” da história da humanidade.
O cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko foi descoberto em 1969 quando Klim Churyumov examinava fotos de regiões do espaço feitas Svetlana Gerasimenko. Precebe-se assim o nome deste astro. Depois disso, este cometa foi confirmado e observado várias vezes por astrónomos aquando da sua aproximação à Terra e ao Sol. Sabe-se que tem actualmente um período orbital de 6,45 anos e que viaja a uma velocidade de cerca de 18 km/s.
Diga-se que Philae é o nome de uma ilha do delta do rio Nilo que contém um obelisco onde foi encontrada uma inscrição bilíngue (grego e hieróglifos egípcios), que incluía os nomes de Cleópatra e de Ptolomeu. Esta inscrição forneceu ao historiador francês Jean-François Champollion as últimas informações necessárias que lhe permitiram decifrar a antiga escrita egípcia que estava encriptada na Pedra de Rosetta.
O módulo Philae foi transportado durante dez anos no ventre da sonda Roseta, da Agência Espacial Europeia (http://rosetta.esa.int/), a qual se encontra agora a orbitar aquele astro a uma distância de cerca de 20 km. É esta distância que Philae percorrerá em queda livre e em direcção à superfície do cometa. Essa viagem, que começara às 10h00 (CET) da manhã de dia 12 de Novembro, demorará sete horas.
Assim que pousar e se fixar na superfície, Philae, que é um autêntico laboratório físico e químico com 10 instrumentos científicos, iniciará diversas experiências analíticas sobre a natureza do cometa. Não faltarão também as imagens panorâmicas da superfície do 67P/Churyumov-Gerasimenko. E, provavelmente, poderemos ver a Terra a partir de um cometa!
É grande a importância desta missão científica de exploração: as análises a efectuar pelo Philae poderão confirmar ou refutar as nossas teorias sobre a composição inicial do sistema solar que nos deu origem. É também um grande momento para a ciência e engenharia espaciais, para o engenho humano que consegue colocar um objecto tenológico complexo num pequeno astro em movimento.
Os nomes, Rosetta e Philae, com que foram baptizados os elementos desta missão espacial, representam o espírito científico de exploração e de decifração da informação que nos permitirá reconstituir os momentos primordiais da formação do nosso lar cósmico. Tocar nas poeiras estelares que levaram, por último, à evolução da nossa espécie, da inteligência que compreende e se maravilha com o próprio Cosmos.
António Piedade
© 2014 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva
António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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