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Prémio Nobel da Química para a caracterização da estrutura e funcionamento dos “sensores” nas superfícies das nossas células

10 Out 2012 - 13h47 - 3.500 caracteres

Dois norte-americanos, Robert Lefkowitz e Brian Kobilka, foram distinguidos com o Prémio Nobel da Química de 2012 pelos seus estudos sobre os “receptores acoplados à proteína G”, uma “obra de arte molecular fruto de décadas de investigação” anunciou a Real Academia Sueca das Ciências. 

 

Nos nossos olhos, nariz, boca, ouvido, nas células da nossa pele existem sensores para a luz, aromas, sabores, sons, e para o tacto, respectivamente, que nos permitem sentir o mundo que nos rodeia. Por adentro do nosso corpo, todas as células possuem sensores, que se descobriu serem semelhantes àqueles, e que permitem às células “sentirem” hormonas e substâncias sinalizadoras, “ouvirem”, “perceberem” e reagirem em conformidade às palavras da comunicação intracelular, autêntica língua bioquímica que é a antecâmara do funcionamento fisiológico que permite a todos os órgãos e tecidos do nosso organismo funcionar em harmonia, reagir à doença, adaptar-se à circunstância de um olhar luminoso, de uma aroma materno, de um paladar da nossa infância, de uma mão familiar, de um sussurro apaixonado.

É através desses sensores, que são proteínas, à superfície das membranas celulares, quais antenas receptoras percustando o ambiente extracelular, e de uma família de outras proteínas a eles acoplados, designadas por proteínas G, localizadas na face interna da membrana, na interface entre o exterior e a cascata de processos metabólicos, que traduzem a mensagem em acção estrutural e funcional, que a vida se faz. São os tradutores das várias partituras bioquímicas que regem outras biomoléculas da orquestra celular. O resultado é a bela sinfonia da vida.

Foi a caracterização da estrutura e o funcionamento destes mecanismos de transdução de sinais bioquímicos que agora foi reconhecido pela Real Academia Sueca. A atribuição do prémio Nobel da Química aos norte-americanos Robert Lefkowitz e Brian Kobilka, premeia décadas de investigação que nos permitem hoje “ver” a funcionar, a nível molecular, hormonas por exemplo como a adrenalina, histamina e insulina, ou neurotransmissores como a serotonina ou dopamina.

Lefkowitz, em 1968, conseguiu identificar na membrana celular um receptor sensível à adrenalina. A seguir, nos anos 1980, Kobilka, trabalhando na equipa de Lefkowitz, conseguiu isolar o gene que codifica esse receptor, uma tarefa muito árdua para a época, em que ainda não existiam os métodos de sequenciação genética rápidos que hoje são quase comuns nos laboratórios de genética. Este receptor, uma proteína, designado por beta-adrenérgico, está hoje na base dos medicamentos beta-bloqueadores, muito utilizados para tratar as doenças cardíacas.

Ao analisaram o gene sequenciado, os cientistas descobriram que a proteína que codificava era semelhante a um outro receptor, a rodopsina, existente no olho e que está envolvido na percepção da luz. Foi esse o “verdadeiro momento eureka”, segundo Lefkowitz, numa declaração citada pelo comité Nobel. Ambos os receptores interagiam com uma proteína G no interior da célula e conheciam-se então mais uns 30 receptores que funcionavam da mesma maneira. Prosseguia-se que esse mecanismo teria de ser muito universal no contexto celular. Hoje conhecem-se cerca de mil genes que codificam este tipo de receptores.

Em 2011, Kobilka e a sua própria equipa conseguiram, através da cristalografia por difracção de raios X (no geral o mesmo método que resolveu a estrutura em dupla hélice do ADN) “fotografar” uma imagem do receptor beta-adrenérgico no instante em que é activado por uma hormona e envia um sinal para o interior da célula. “Uma obra-prima molecular — o resultado de uma década de investigação”, sublinha o comité Nobel.

Percebemos assim melhor como é que órgãos como o cérebro, as glândulas, o coração, o estômago, entre outros, comunicam entre si. Como é que a percepção de perigo ou a sensação de medo se traduzem na libertação para a corrente sanguínea da adrenalina suficiente para que o coração aumente a frequência dos seus batimento, a pressão arterial aumente, e assim possamos reagir, correndo ou lutando mais eficazmente para salvaguardar a sobrevivência. O reverso desregulado, nos mesmos mecanismos, causa doenças como a hipertensão.

A compreensão das estruturas e dos receptores e das proteínas G a eles acopladas, assim como o respectivo funcionamento, revelou-se muito importante para a compreensão a nível molecular dos processos fisiológicos envolvidos na manutenção do estado de saúde e para o desenvolvimento de novos fármacos para tratar doenças. De facto cerca de 50% dos medicamentos existentes actuam através deles, porque muitas doenças resultam de perturbações a nível molecular em que aqueles estão envolvidos.

 

António Piedade

 

Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

 


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António Piedade

António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.


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