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Reciclar a malária

25 Jul 2012 - 13h08 - 3.398 caracteres

Reciclar é uma característica do Universo.

Reciclar é reencontrar a essência primária, o alfabeto, os blocos construtores de novas arquitecturas.

O nosso planeta é uma história imensa e intensa de vários ciclos geoquímicos e geofísicos, em que elementos e compostos se intervertem e revoltam o planeta segundo partituras e coreografias específicas, mas ainda não muito bem conhecidas.

A vida, tal como a conhecemos, evoluiu neste planeta de coração temperado a ferro e níquel, e superfície composta maioritariamente por diversos compostos de silício, oxigénio, carbono, enxofre, fósforo, entre outros elementos. A vida evoluiu com a “função reciclar” inscrita intimamente no fluxo de matéria e energia que foi e é força motriz para fazer emergir a diversidade.

Vários ciclos e fluxos elementares possuem períodos de tempos de reciclagem de ordem geológica (milhares, milhões de anos) que ultrapassam a nossa longevidade telomérica.

Mas, desanuviemos o olhar do horizonte secular e milenar, e mergulhemos na intimidade de uma célula, na riqueza e densidade molecular que interage em menos de um segundo.

A vida teria de ser muito diferente se a célula não fosse exímia a reciclar. De facto, as células possuem um complexo sistema de maquinaria proteica, implacável e eficiente, que permite a constante reciclagem de muitos dos diversos componentes celulares já não funcionais.

Nestes micrómetros de vida existem instruções precisas, geneticamente preservadas, proteicamente funcionais, para uma eficiente e bioeconómica reciclagem dos blocos moleculares essenciais. Minimizar as trocas com o meio, reciclar o que já não é bioquimicamente funcional, reobtendo assim os blocos construtivos, permite poupar energia e matéria-prima ao não sintetizar de novo.

Uma das proteínas com papel central numa reciclagem específica é uma enzima que recicla alguns blocos constituintes dos ácidos nucleicos (ADN e ARN). Denominada Hipoxantinaguanina fosforiboxiltransferase (HGPRT, sigla inglesa), esta enzima “recupera” as bases purinas que resultaram da degradação de cadeias de ARNm que já cumpriram a sua função, e liga-as a moléculas do açúcar ribose. São assim recicladas nos respectivos nucleosídeos e nucleotídeos, blocos constituintes de uma nova cadeia de ARNm.

Deficiências na HGPRT impedem ou diminuem a sua função “reciclante”. Este estado define a causa molecular de diversas doenças como a síndrome de Lesch-Nyhan, doença hereditária caracterizada por retardamento mental, comportamento agressivo, automutilação e insuficiência renal. Outra perturbação é a conhecida por “gota”, bioquimicamente manifestada por um excesso na produção de ácido úrico e que causa dolorosas perturbações nas articulações.

A HGPRT é ainda crucial para o parasita que causa a malária. Estes parasitas, protozoários do gênero Plasmodium, dependem daquela enzima para obterem os necessários nucleótidos.

Vários grupos de investigação têm explorado as diferenças nas estruturas tridimensionais das HGPRT humanas e a dos parasitas causadores da malária, no sentido de desenhar drogas específicas só à forma da HGPRT do parasita. È o caso do trabalho publicado em Junho na revista Chemistry & Biology, sobre uma segunda geração de drogas, potenciais inibidores para aquela enzima do parasita Plasmodium falciparum.

Reciclar ou não reciclar poderá então definir o destino do parasita e do hospedeiro infectado.

Enfim. Reciclar é viver.

 

António Piedade

Ciência na Imprensa Regional

 

Referência do artigo:

Keith Z. Hazleton, Meng-Chiao Ho, Maria B. Cassera, Keith Clinch, Douglas R. Crump, Irving Rosario, Emilio F. Merino,Steve C. Almo, Peter C. Tyler, Vern L. Schramm. Acyclic Immucillin Phosphonates: Second-Generation Inhibitors of Plasmodium falciparum Hypoxanthine- Guanine-Xanthine Phosphoribosyltransferase. Chemistry & Biology, Volume 19, Issue 6, 721-730, 22 June 2012.

http://dx.doi.org/10.1016/j.chembiol.2012.04.012


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António Piedade

António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.


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