A virgem e o coelho
“A Virgem e o Coelho” (Madonna del Coniglio, no italiano original), é um óleo sobre tela do pintor italiano Tiziano Vecellio (1473? – 1590) que pode ser actualmente apreciado no museu do Louvre, em Paris. Tiziano é um dos principais representantes da escola veneziana do Renascimento Europeu, e este seu quadro referencia a pureza da fertilidade e da concepção imaculada de Maria, representada pela alvura, símbolo de pureza, do coelho enquanto espécie associada à fertilidade.
Nesta pintura renascentista, Maria recebe de Catarina de Alexandria o menino Jesus. Este contempla um coelho branco bem seguro pela mão esquerda de sua mãe imaculada. As mãos de Maria fazem a interligação entre o menino Jesus e a pureza representada pelo coelho branco.
Como veremos mais à frente, há razões para uma intencionalidade para este simbolismo do coelho com a pureza e com a concepção sem pecado.
A obra faz uma clara alusão ao mistério da incarnação e da imaculada concepção de Maria, numa interpretação de Ticiano do culto mariano e dos novos evangelhos bíblicos. Mas reparemos também na presença do cesto semiaberto com fruta, uma maçã, numa alusão ao pecado original relatado nos Velhos testamentos.
Esta obra “A Virgem e o Coelho” contem ainda informação insuspeita sobre da evolução da humanidade na sua relação com o mundo. Muito para além do renascimento e vitória da luz sobre as trevas, ajustado pela cristandade ao solstício de inverno, apropriada e primeiramente celebrada nas festividades natalícias neste canto ocidental da humanidade, para celebrar o nascimento do menino Jesus.
Mais do que possamos extrair a partir dos estudos derivados da História da Arte, de outros contextos implícitos em segundos e outros planos, também eles férteis em informação histórica nas suas matrizes telúricas, bucólicas mas também de urbanas modernidades, este quadro encerra em si uma informação que corrobora, imaginem, dados recentes provindos da genética e genómica modernas: o da domesticação do coelho!
O epicentro está de facto no coelho branco! E porquê? Porque é uma das primeiras obras de arte conhecidas em que um coelho branco é representado em contacto directo com uma figura humana, mesmo sendo a de Maria, mãe de Jesus.
Saliento: coelho branco e não cinzento que é a cor do bravo, endémico e nativo. Por outras palavras, este quadro indica-nos que, pelo menos em 1530, o coelho já tinha sido domesticado.
Embora caçado desde tempos imemoriais pelo Homem, caçador-recolector, para fonte de carne e pele, a domesticação do coelho selvagem terá ocorrido não há mais de 1500 anos. Esta informação ressalta dos estudos de divergência entre os genomas das variadíssimas espécies de coelhos domesticados hoje conhecidas e do seu “primo” selvagem.
Estudos efectuados nos últimos anos pelo biólogo e geneticista português Miguel Carneiro (e seus colaboradores), investigador no Campus Agrário de Vairão do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, mostram que o coelho europeu (Oryctolagus cuniculus) é o antepassado comum de todos os actuais coelhos domésticos. Curiosamente, esta espécie é nativa da Península Ibérica onde duas subespécies divergiram há cerca de 1,8 milhões de anos, sendo muito bem distinguíveis geneticamente: a O. c. algirus, ainda existente no sudoeste da península, principalmente em Portugal, e a O. c. cuniculus presente no noroeste da Ibéria e também no sul da França. Os trabalhos de referência estão publicados nas revistas Molecular Biology and Evolution (2011, 28:1801-1816), Genetics (2009, 181:593-606) e Evolution (2010, 64:3443-3460), entre outras.
A primeira referência ao coelho remonta aos Fenícios, povo comerciante do Mediterrâneo e costa de toda a Península hoje dita Ibérica. Os fenícios notaram na presença de um animal pequeno (o coelho) que se lhes assemelhava a um outro da sua terra natal no norte de Africa também roedor: o damão-do-cabo. Assim designaram a designavam a península por “i-shephan-im” (terra dos daimões), de onde derivou a designação “Hispânia”.
Há, depois, muitas evidências históricas, (como a de Plínio, o Velho, na sua História Natural) de uma utilização “massiva” de coelhos durante a ocupação da Península Ibérica pelo Império Romano. De facto, no século I a.C. os Romanos referiam-se à Hispânia também como a terra dos coelhos seguindo a designação fenícia. Os Romanos, depois de os fenícios, encarregaram-se de difundir o coelho pelo resto do seu império. Cercados de coelhos, designados por “leporarias”, terão sido utilizados para amplificar a sua reprodução e satisfazer a procura da carne de coelho, mas sem que uma deliberada reprodução selectiva de certas características tenha sido efectuada pelos Romanos ou povos ocupados, pelo que os investigadores excluem a ocorrência de uma efectiva domesticação do coelho durante esse período.
Um outro registo histórico, bem documentado (ver referências nos artigos atrás citados), surge aos investigadores como testemunho de uma domesticação intencional do coelho ancestral, com uma forte pressão de selecção artificial para fixar características de interesse, como seja a docilidade de trato ou a cor da pelagem. Esta selecção parece ter-se iniciado a partir do séc. VI d.C. em Mosteiros do Sul de França, mais especificamente na Provença, propulsionada por um decreto do Papa Gregório I (c. 504 – 12 de Março 604), também conhecido como São Gregório Magno, em que é consagrada a pureza carnal dos coelhos recém-nascidos!
Por oportunidade musical, mesmo que aqui dissonante, refira-se que Gregório I foi responsável pela reforma do cantochão de que resulta a divulgação e disseminação do tipo de música que hoje designamos por gregoriana.
Segundo o referido edital Papal, os coelhos recém-nascidos não eram considerados carnais pelo que poderiam ser consumidos durante a quaresma sem que daí adviesse pecado para aqueles que os consumiam! Eis uma forte razão para os manter em cativeiro, para os domesticar. Há registos da troca de coelhos no ano de 1194 entre mosteiros do centro da Europa e do Sul de França, o que mostra que a sua domesticação era comum já no primeiro milénio d.C.
A natureza não carnal dos coelhos recém-nascidos, sugerindo uma concepção sem pecado, encontra assim eco na associação do coelho branco do quadro de Ticiano ligado á concepção imaculada do menino Jesus por Maria, nascimento celebrado nesta quadra natalícia pela cristandade.
© 2011 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva
António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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