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Porquê as noites de insónia podem afectar a nossa saúde

19 Set 2019 - 17h26 - 7.423 caracteres

Porque é que as pessoas que têm horários desregrados, tais como os trabalhadores nocturnos, são mais propensas às inflamações intestinais e à obesidade? Uma relação agora descoberta entre a função imunitária e o relógio circadiano do cérebro poderá constituir a resposta a esta pergunta.

 

É bem sabido que as pessoas que fazem turnos de trabalho nocturnos, ou que mudam com frequência de fuso horário, têm uma tendência acrescida para o excesso de peso e sofrem mais a miúde de inflamações intestinais. Muitos estudos têm procurado desvendar a causa deste fenómeno, tentando relacionar os processos fisiológicos com a actividade do relógio circadiano do cérebro, que é gerada em resposta ao ciclo noite-dia.

Agora, a equipa de Henrique Veiga-Fernandes, no Centro Champalimaud em Lisboa, Portugal, descobriu que a função de um certo grupo de células imunitárias, conhecidas por contribuírem de forma muito significativa para a saúde intestinal, encontra-se sob o controlo directo do relógio circadiano do cérebro. Os seus resultados foram publicados no dia 18 de Setembro na revista Nature (https://www.nature.com/articles/s41586-019-1579-3).

“A privação de sono, ou os maus hábitos de sono, podem ter efeitos graves sobre a saúde, provocando um leque de doenças que possuem frequentemente uma componente imunitária, tal como as inflamações intestinais”, diz Veiga-Fernandes, o investigador principal que liderou o estudo. “Para perceber por que isso acontece, começámos por querer saber se as células imunitárias intestinais eram influenciadas pelo relógio circadiano.”

 

Grande relógio, pequenos relógios

Quase todas as células do corpo possuem uma maquinaria genética interna que acompanha o ritmo circadiano através da expressão dos chamados “genes relógio”. Estes genes funcionam como pequenos relógios que indicam a hora do dia às células, ajudando assim os órgãos e os sistemas por elas compostos a antecipar o que vai acontecer, por exemplo se são horas de comer ou de dormir.

Como cada um destes pequenos relógios é autónomo, eles precisam de ser sincronizados. “As células no interior do corpo não recebem informação direta acerca da luminosidade exterior, o que significa que alguns deles poderão não estar a ‘marcar’ a hora certa”, explica Veiga-Fernandes. “A tarefa do grande relógio do cérebro – que, esse sim, recebe informação direta da luz do dia – consiste, portanto, em sincronizar todos os pequenos relógios que existem dentro do corpo de forma a que todos os sistemas fiquem por sua vez sincronizados, o que é absolutamente crucial para o nosso bem-estar.”

Entre as diversas células imunitárias presentes no intestino, a equipa descobriu que as chamadas “células linfóides inatas de tipo 3” (ILC3 na sigla em inglês) eram particularmente sensíveis às perturbações dos seus genes relógio. “Estas células desempenham funções importantes no intestino: lutam contra as infeções, controlam a integridade da parede intestinal e regulam a absorção de lípidos”, explica Veiga-Fernandes. "Ora, quando perturbámos os seus relógios, constatámos que o número de ILC3 no intestino diminuía de forma significativa, o que conduzia a inflamações severas, falhas da barreira intestinal e à acumulação acrescida de gordura."

Estes resultados levaram a equipa a perguntar-se por que o relógio circadiano do cérebro tinha um efeito tão marcado sobre o número de ILC3 no intestino. A resposta a esta pergunta acabou por ser o “elo perdido” que procuravam.

 

No sítio certo à hora certa: eis a questão

Quando os cientistas analisaram a forma como a perturbação do relógio circadiano cerebral influía sobre a expressão de diversos genes das ILC3, descobriram que desencadeava um problema muito específico: o “código postal” molecular destas células desaparecia! Acontece que, de forma a se localizarem no intestino, as ILC3 precisam de expressar uma proteína na sua membrana que funciona como um código postal molecular. Este marcador diz às ILC3, que só residem no intestino de forma transitória, para onde devem migrar. Na ausência dos sinais vindos do relógio circadiano do cérebro, as ILC3 deixam de expressar este marcador, o que significa que se tornam incapazes de chegar ao seu destino.

Segundo Veiga-Fernandes, estes resultados são muito entusiasmantes, porque permitem esclarecer porque é que a saúde intestinal sofre nas pessoas que permanecem regularmente ativas durante a noite. “Este mecanismo é um belíssimo exemplo de adaptação evolutiva”, diz o investigador. “Durante o período ativo do dia, que corresponde aos momentos em que nos alimentamos, o relógio circadiano do cérebro reduz a atividade das ILC3 de forma a promover um metabolismo saudável dos lípidos. Mas ao mesmo tempo, o intestino pode ficar danificado durante as refeições. Por isso, uma vez terminado o período de alimentação, o relógio circadiano do cérebro diz às ILC3 para voltarem ao intestino, onde são agora necessárias para lutar contra eventuais invasores e promover a regeneração do epitélio (parede) intestinal.”

“Não é, portanto, surpreendente”, prossegue Veiga-Fernandes, “que as pessoas que trabalham à noite sejam suscetíveis de sofrer perturbações inflamatórias do intestino. Tem tudo a ver com o facto de este eixo neuro-imunitário específico estar tão bem regulado pelo relógio do cérebro que qualquer mudança nos nossos hábitos surte efeitos imediatos nestas importantes células primordiais.”

Este estudo vem juntar-se a uma série de descobertas fundamentais, realizadas por Veiga-Fernandes e a sua equipa, que estabelecem novas relações entre os sistemas imunitário e nervoso. “A noção de que o sistema nervoso é capaz de coordenar a função do sistema imunitário é totalmente nova. Tem sido um percurso muito inspirador; quanto mais aprendemos acerca desta relação, melhor percebemos o quão importante ela é para o nosso bem-estar. Aguardamos agora pelo que iremos descobrir a seguir”, conclui.

 

 

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