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Neurocientistas resolvem quebra-cabeças com 200 anos

13 Ago 2019 - 15h30 - 12.149 caracteres

A Lei de Weber é a regra quantitativa mais geral e mais bem comprovada da Psicofísica, a ciência que estabelece relações entre a força dos estímulos físicos e as sensações que estes geram na mente. Embora tenha sido enunciada há 200 anos, ainda não havia uma forma clara de escolher uma explicação desta lei entre as muitas que têm sido propostas. Mas agora, uma equipa de cientistas mostrou que a Lei de Weber pode ser compreendida como a consequência de uma nova lei da psicofísica que descreve o tempo que demoram as decisões sensoriais a serem tomadas. A nova regra vem permitir uma explicação robusta e única da lei de Weber.

 

Durante séculos, o mundo da mente e o mundo físico foram considerados como fundamentalmente distintos. Enquanto o movimento de objectos inanimados podia ser medido e, portanto, previsto com a ajuda da Matemática, os movimentos dos organismos vivos – isto é, o seu comportamento – parecia moldado por forças diferentes, sob o controlo da vontade.

Há cerca de 200 anos, o médico alemão Ernst Heinrich Weber fez uma observação aparentemente inócua. Mais tarde, isso levou ao nascimento da Psicofísica, a ciência que relaciona os estímulos físicos provenientes do mundo exterior com as sensações que eles evocam na mente de uma pessoa.

Weber pediu aos seus sujeitos experimentais para decidir qual de dois pesos ligeiramente diferentes era o mais pesado. A partir dos resultados das suas experiências, descobriu que a probabilidade de uma pessoa fazer a escolha certa só depende do rácio entre os pesos.

Por exemplo, se um indivíduo acerta 75% das vezes quando compara um peso de 1 kg e um peso de 1,1 kg, também acertará 75% das vezes ao comparar um peso de 2 kg e um de 2,2 kg – e, mais geralmente, quando comparar qualquer par de pesos em que um deles é 10% mais pesado do que o outro. Esta regra simples e precisa abriu a porta à quantificação do comportamento em termos de “leis” matemáticas.

As observações de Weber foram desde então confirmadas em todas as modalidades sensoriais e em muitas espécies animais, conduzindo àquilo que ficou conhecido como Lei de Weber. É a mais antiga e mais fortemente comprovada lei da Psicofísica.

As leis da Psicofísica descrevem regras precisas da percepção e são importantes porque podem ser utilizadas para obter explicações matemáticas dos comportamentos em termos de processos cerebrais, tal como os padrões precisos de movimento dos planetas no céu foram úteis para perceber a gravitação.

Têm sido propostas muitas explicações da Lei de Weber e, embora todas consigam descrever os resultados de Weber, não foi encontrada nenhuma abordagem experimental que permita identificar quais desses modelos está certo. O quebra-cabeças da explicação matemática da lei de Weber tem permanecido sem solução.

Agora, uma equipa de cientistas do Centro Champalimaud em Lisboa, Portugal, descobriu que a Lei de Weber pode ser descrita como a consequência de uma nova lei da Psicofísica que envolve o tempo que demora a escolha e não apenas o desenlace da decisão. A equipa mostrou que esta nova regra é suficiente para obter um modelo matemático único e robusto que descreve o processo cognitivo subjacente à Lei de Weber. Os seus resultados foram publicados na revista Nature Neuroscience (https://www.nature.com/articles/s41593-019-0439-7).

 

O tempo é chave

Neste novo estudo, Alfonso Renart, o investigador principal que liderou o trabalho, e a sua equipa, treinaram ratos na discriminação entre dois sons de intensidades ligeiramente diferentes. Fabricaram para isso diminutos auscultadores, especialmente adaptados à cabeça dos ratos, e utilizaram-nos para transmitir sons em simultâneo para ambos os ouvidos dos animais.

Em cada tentativa, o volume do som que chegava a um dos ouvidos era ligeiramente mais alto do que o outro. A tarefa do rato consistia em comunicar a sua decisão orientando a cabeça para o lado de onde provinha o som mais forte. “Trata-se de um comportamento natural nos ratos, porque eles orientam a cabeça em direcção à fonte do som, tal como nós”, explica José Pardo-Vazquez, um dos co-autores do estudo. Os ratos tinham a possibilidade de ouvir os sons durante o tempo que fosse preciso para decidirem. Portanto, cada tentativa fornecia uma decisão e um tempo de tomada de decisão.

“As nossas experiências confirmaram que o comportamento dos animais seguia a Lei de Weber”, diz Pardo-Vazquez. A sua capacidade de determinar qual dos dois sons era mais alto apenas dependia do rácio entre as intensidades dos sons. Quando o rato comparava as intensidades de dois sons suaves, a sua taxa de respostas certas era a mesma que quando os dois sons tinham um volume mais elevado – desde que ambos os pares de sons tivessem o mesmo rácio de intensidade.”

A seguir, a equipa começou a analisar em pormenor o tempo que os ratos demoravam a fazer as suas escolhas – um passo que se revelou crucial. “Em geral, os estudos da Lei de Weber focavam-se na exactidão da discriminação dos sons – que era aquilo que Weber tinha efectivamente observado”, explica Pardo-Vazquez.

“Surpreendentemente, o tempo necessário para decidir tem sido muito pouco estudado.”

A equipa percebeu então que os tempos de reacção e a intensidade do par de sons estavam ligados – quanto mais intensos os sons, mais curto o tempo de reacção. E mais: os cientistas mostraram que a natureza desta ligação era única e matematicamente precisa. Isto fazia com que os tempos de decisão observados, por exemplo na discriminação entre dois sons suaves, fossem exactamente proporcionais aos tempos de decisão medidos quando o sujeito discriminava dois sons intensos – desde que as suas intensidades relativas fossem constantes.

 

Para além da Lei de Weber

Os autores tinham, de facto, descoberto uma nova “lei da Psicofísica”, a que chamaram de “Equivalência Tempo-Intensidade na Discriminação” (em inglês, Time- Intensity Equivalence in Discrimination ou TIED), uma vez que ligava a intensidade global de um par de sons ao tempo que demorava a discriminá-los. A TIED é mais constringente do que a Lei de Weber, não apenas porque estabelece uma relação em termos da exactidão da discriminação de pares de sons, mas também em termos dos tempos de decisão associados. “A precisão desta relação entre os tempos de decisão nas nossas experiências é inacreditável, diz Pardo-Vazquez. “Não é frequente um comportamento animal poder ser descrito com um tal nível de precisão matemática.”

Para determinar se a TIED também se verificava em condições experimentais diferentes, a equipa fez o mesmo tipo de experiências em humanos, obtendo resultados semelhantes. Os cientistas também analisaram experiências feitas por outros grupos, em ratos, onde os animais tinham de realizar uma discriminação olfactiva quando expostos a uma mistura de cheiros. Mais uma vez, os resultados foram semelhantes. “Ainda é cedo para afirmar que a TIED é tão geral como a Lei de Weber, mas o facto de termos obtido os mesmos resultados em duas espécies e em duas modalidades sensoriais é um primeiro passo alentador”, conclui Pardo- Vazquez.

 

À procura do modelo certo

Dezenas de modelos matemáticos têm sido propostos ao longo dos anos para explicar a Lei de Weber, mas não existia até aqui nenhuma forma experimental clara de os distinguir. Agora, segundo este estudo, a TIED permite dar esse passo. A análise realizada revelou que, para ser consistente com a TIED, o modelo matemático da tarefa de discriminação sensorial teria de satisfazer um conjunto de condições estritas. “Foi fantástico”, diz Juan Castiñeiras, co-autor do estudo. “A TIED colocava constrangimentos no universo de explicações possíveis e, portanto, resolvia a ambiguidade entre os muitos modelos propostos para explicar a Lei de Weber.” Um modelo anteriormente proposto pelo psicólogo Stephen Link, no fim dos anos 1980, esteve perto da solução, mas faltava-lhe uma condição importante que descrevia como a intensidade dos estímulos sensoriais é codificada pela actividade dos neurónios sensoriais.

O passo final consistiu em aplicar este conjunto de condições para construir um modelo e testar a exactidão com que este modelo dava conta do comportamento dos ratos. “Analisámos o modelo mais simples, com o menor número de parâmetros possível”, explica Castiñeiras. E quando escolheram os valores desses parâmetros de maneira a maximizar a semelhança com o comportamento dos ratos, os cientistas descobriram que o modelo “encaixava” nos dados de forma notável, com um erro quase nulo. “Mesmo esse modelo tão simples capturou bem tudo aquilo que conseguíamos medir. Ficámos assim muito mais confiantes de que o nosso modelo descreve de facto algo verdadeiro sobre como funciona a percepção”, diz Renart.

 

Avanço garantido

Estes resultados são notáveis na sua área devido à precisão de ambos: a nova lei psicofísica e do modelo matemático que descreve os dados experimentais. “Embora menos frequentemente observados em Biologia e no estudo do comportamento do que na Física, os resultados experimentais precisos permitem explicações precisas que resolvem as ambiguidades anteriores e, portanto, constituem um avanço”, diz Renart. Por exemplo, os resultados da equipa sugerem que uma das principais teorias da Psicofísica não é adequada para descrever a TIED. “A produção de explicações matemáticas que excluem teorias concorrentes é muito rara em Neurociências, porque existe sempre a possibilidade de modificar ligeiramente um modelo para o tornar compatível com os dados experimentais”, salienta Castiñeiras. “Nós mostrámos que uma teoria muito influente da Psicofísica (chamada Teoria da Detecção) não permitia modelizar os tempos de decisão e que, portanto, não conseguia descrever a TIED. Passava ao lado da essência da explicação da Lei de Weber”.

Um dos próximos objectivos dos cientistas é perceber como é que o modelo matemático que identificaram é implementado pelo cérebro: “Queremos determinar sistematicamente quais são as áreas cerebrais relevantes para a nossa tarefa sensorial e como os neurónios desses circuitos realizam os diversos elementos computacionais do modelo”, conclui Renart.

 

 

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