«Por vezes os media contribuem para descredibilizar a ciência»
Por: GPS / Fundação Francisco Manuel dos Santos
Nascida em Coimbra, Sofia Amaral-Garcia investiga como diferentes incentivos afectam o comportamento dos agentes sociais. Esta entrevista foi realizada no âmbito do GPS - Global Portuguese Scientists, um site onde estão registados os cientistas portugueses que desenvolvem investigação por todo o mundo.
Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?
Sou investigadora no DIW Berlin (Instituto Alemão de Investigação Económica) e, de forma muito sucinta, tento responder a questões ligadas à Análise Económica do Direito e à Economia da Saúde. As questões que analiso são em especial sobre incentivos e como alterações desses mesmos incentivos poderão ter um impacto no comportamento de diversos agentes, tais como médicos, pacientes e juízes. Faço uso de dados e técnicas estatísticas/econométricas para quantificar a relação entre duas variáveis. Vejamos um exemplo relacionado com um projecto no qual trabalhei recentemente. Suponhamos que há uma reforma legal ou de política pública que faz com que os médicos e os hospitais sejam mais responsabilizados se os seus doentes sofrerem um efeito adverso. Será que os médicos alteram o seu comportamento? No caso de partos, será que, em média, os médicos tendem a fazer mais cesarianas em comparação com partos naturais por receio de serem levados a tribunal caso alguma coisa corra mal? Se sim, qual o valor anual estimado deste aumento (quantas cesarianas se fazem a mais devido a esta reforma)? E quais são os respectivos custos e efeito na saúde das mães e dos recém-nascidos?
Outro projecto no qual estou a trabalhar tem a ver com a difusão da internet. O objectivo é perceber se os utilizadores de internet estão a procurar mais informação sobre saúde online e se isso está a levar a alterações no tipo de tratamento que recebem e requerem. Considerando o caso inglês, o nosso estudo aponta para que mães residentes em zonas com mais internet tendem a ter mais “cesarianas electivas” (sem indicação médica), sem que isso traga qualquer melhoria em diferentes indicadores de saúde. Isto tende a ser particularmente evidente para mulheres que são mães pela primeira vez.
Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?
Considero particularmente entusiasmante perceber como decisões de políticas públicas e reformas legais podem influenciar diferentes agentes que, por sua vez, podem afectar a sociedade. Os temas analisados são bastante actuais e poderão ser úteis no desenho de políticas públicas. Há decisões de políticas públicas e reformas legais que são anunciadas como uma forma de melhorar o status quo mas que podem trazer consequências adversas e até nocivas. Por exemplo, há estudos nos EUA sobre o impacto de incentivos hospitalares (tais como a criação de rankings de hospitais e reformas legais) que concluem que alguns hospitais começaram a “seleccionar” os seus pacientes. Ou seja, começaram a recusar casos considerados muito graves e difíceis, de forma a poderem ter uma avaliação elevada nos rankings ou a prevenir processos. Isto é um exemplo óbvio de um efeito indesejável, mas que deverá ser tido em consideração antes de implementar este tipo de políticas. Sem investigação em áreas como aquelas em que trabalho não seria possível obter dados concretos sobre este tipo de efeito nem quantificar correctamente os seus impactos na sociedade.
Para além disso, há uma constante evolução relativamente às técnicas econométricas utilizadas e à forma de analisar os problemas, o que faz com que o processo de aprendizagem seja contínuo. As ciências sociais são muito complexas e é difícil identificar correctamente causas e efeitos.
Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?
Decidi sair de Portugal acima de tudo porque queria fazer um doutoramento em Direito e Economia que não era oferecido no país. Na altura pareceu-me também importante ter uma formação internacional. Desde que saí de Portugal vivi em diferentes países e passei por diversas instituições: Universidade de Bolonha, Universidade Erasmus de Roterdão, Universidade Pantheon-Assas Paris II, ETH Zurich, Max Planck Institute for Colective Goods, New York University e agora DIW Berlin. De forma geral, encontrei menos formalidade, se bem que isso também depende do departamento: Direito tende a ser mais formal do que Economia.
Tive várias experiências agradáveis, mas destacaria talvez como mais surpreendente a da New York University (NYU). Em primeiro lugar, Nova Iorque é uma cidade frenética com uma energia contagiante. Em segundo lugar, a vida académica na NYU é altamente estimulante e competitiva. Há uma forte orientação para a eficiência e para conseguir publicar nas revistas académicas internacionais mais relevantes, e há diversos seminários de elevada qualidade. Por fim destaco outro facto curioso, que é a existência de um almoço informal semanal: uma oportunidade excelente para falar sobre trabalho (e receber perguntas sobre a investigação em curso como se estivéssemos a apresentar num seminário) e sobre o que se passa no mundo. Por exemplo, estava na NYU quando faleceu o juíz Antonin Scalia do Supremo Tribunal dos EUA e houve discussões muito interessantes sobre possíveis sucessores e qual seria a melhor estratégia do Presidente Obama. Muitos dos professores de direito da NYU trabalharam como assistentes de juízes proeminentes, o que lhes dá uma visão muito abrangente e real do sistema legal.
Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?
Não tenho dúvidas de que se faz investigação de qualidade em Portugal, apesar dos poucos meios disponíveis, e que há investigadores portugueses de grande qualidade, dentro e fora do país. A visão de alguém que está fora há quase 10 anos, e por isso tem menos conhecimento de causa, é que algumas áreas se têm de facto destacado, outras menos (como a Análise Económica do Direito). No entanto, diria que o panorama científico português sofre restrições importantes e, sem ultrapassá-las, é difícil que venha a haver um papel mais preponderante da ciência. A investigação não ocupa um lugar prioritário e há ainda um grande desconhecimento sobre o que é, e como poderá ser usada para melhorar a sociedade nalguns casos (como por exemplo as ciências sociais). Naturalmente que também há investigação de má qualidade, e pode ser perigoso quando não se faz uma distinção entre os dois tipos – o que é evidentemente válido para todos os países.
É necessário também ter em conta o sistema de incentivos dos investigadores. Hoje em dia o sistema pressiona o número de publicações e não a qualidade, pelo que a própria investigação é muitas vezes penalizada por isso. Este efeito torna-se mais crítico pelo papel desempenhado pelos meios de comunicação social na divulgação da ciência. Por vezes assiste-se à promoção de investigação de baixa qualidade, sem credibilidade científica, ou à descontextualização de investigação de boa qualidade para criar notícias sensacionalistas. Isto acaba por descredibilizar a ciência e o papel dos investigadores.
Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?
Parece-me particularmente interessante conseguir juntar numa plataforma única investigadores portugueses das mais diversas áreas que se situam em diferentes partes do mundo. É também muito interessante poder acompanhar os percursos percorridos, criar grupos de discussão, aderir a comunidades. Isto pode permitir criar novas redes de contactos (não só entre quem está fora de Portugal, mas também entre quem está dentro e fora do país), conhecer melhor o que fazem os investigadores portugueses e até fomentar a discussão de formas para melhorar e divulgar a ciência em Portugal. Penso que o GPS tem um potencial elevado e poderá contribuir para colocar no mapa o que de melhor se faz em termos de investigação.
Consulte o perfil de Sofia Amaral-Garcia no GPS – Global Portuguese Scientists.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.
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