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«Estive 9 meses na Antártida só com mais 12 pessoas»

21 Mar 2017 - 12h42 - 9.602 caracteres

Entrevista a Ricardo Almeida, o (único) engenheiro português que trabalha na Antártida.

 

Nascido em Évora, Ricardo Almeida vive e trabalha na Antártida, onde faz… de tudo um pouco, mas dedica-se sobretudo a trabalhos electrónicos e de telecomunicações, a sua especialidade. Esta entrevista foi realizada no âmbito do Global Portuguese Scientists (GPS) - um site onde estão registados os cientistas portugueses que desenvolvem investigação por todo o mundo.

 

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

Profissionalmente sou um Engenheiro de Electrónica e Telecomunicações e é exactamente essa a função que estou a desempenhar na Antártida. Na realidade, no inverno de 2016 fui um dos membros da equipa e acabei por fazer de tudo um pouco por aqui. De Março até ao final de Outubro estive completamente isolado da humanidade, tirando 12 outros como eu, na estação de Halley VI. Durante esses 8 meses, o oceano à volta do continente congelou de tal forma que, aliado às temperaturas extremas, tempestades constantes e ausência de luz solar, isso impossibilitou a visita de barcos ou aviões à nossa base. A minha função principal foi sempre garantir que os projectos científicos a meu cargo se mantivessem funcionais. Mas com apenas outras 12 pessoas num raio de 800 quilómetros, acabei por fazer o que fosse preciso para manter a harmonia e funcionalidade da base e da ciência que dela depende, o que incluiu cozinhar, arranjar torradeiras, limpar sanitas e reparar receptores de GPS de alta precisão.

A vida por aqui oscilou entre a simplicidade de uma manhã a cozer pão para o pequeno-almoço ou a lançar balões meteorológicos ou escrever código para monitorizar a posição dos módulos que constituem a nossa base. Também tive tarefas tão complexas como reparar e manter radares de média frequência que monitorizam explosões solares, ou conduzir ski-doos a -30 ºC no meio da escuridão com uma unidade de radar de superfície e GPS de alta precisão para estudar uma das fendas que ameaçavam transformar a nossa base num gigantesco icebergue. A vida por aqui raramente ficou monótona e como engenheiro foi sem dúvida uma oportunidade de uma vida.

 

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

Desde miúdo que sempre gostei de puzzles, livros e Legos. Quando se junta isso uma apetência e gosto natural pela matemática e ciências naturais tem-se a receita para um engenheiro e cientista. De certa forma continuo a fazer o mesmo que sempre fiz: resolver problemas e ter satisfação nisso, mas agora pagam-me para o fazer e ainda consigo umas aventuras interessantes à conta disso.

A maioria do meu trabalho não é muito diferente de algo que poderia estar a fazer no mundo “normal”. Mas viver na Antártida inclui um conjunto de desafios que dificilmente se encontram noutro lado, principalmente durante o Inverno: as baterias duram um terço do normal, os ecrãs LCD congelam a meio das operações, as antenas acumulam centímetros de gelo em poucos minutos, e bastam uns segundos sem luvas a pressionar meia dúzia de botões num painel no exterior para se perder a sensibilidade na ponta dos dedos. Isso aliado a mais de 3 meses em que nem sequer se avista o disco solar torna operações tão simples como mudar um fusível ou soldar uma resistência autênticas maratonas de resistência. O frio e o clima extremo que se experienciam por aqui, principalmente no Inverno, trazem toda uma nova dimensão aos trabalhos que por aqui tenho de fazer, com equipamento que se espera que funcione durante todo o ano no exterior. Muitos destes trabalhos rapidamente se tornam exasperantes, especialmente quando é preciso projectar sistemas capazes de sobreviver a ventos de 90 km/h ou a temperaturas abaixo de -50 ºC. Mas agora que olho para trás e os vejo a funcionar, sinto um orgulho que dificilmente sentiria no mundo "normal".

 

Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?

A emigração foi uma consequência da mudança de trabalho, não foi ela própria a minha motivação. Sou o único português na estação, tive de trazer para aqui uma mente aberta e uma atitude de adaptação. A Antártida é um continente apátrida por definição. É para todos mas não é de ninguém. Mas vivi numa base britânica com uma tripulação maioritariamente também britânica e isso exigiu alguma adaptabilidade da minha parte. Não encontrei nada inesperado no sentido em que toda a minha realidade no último ano foi de certa forma inesperada.

Compreendo perfeitamente o sentimento de saudade e de “deslocamento” dos portugueses obrigados a emigrar por força das circunstâncias, mas esse certamente não foi o meu caso. A decisão de vir para aqui foi puramente opcional e consciente. A partir daí foi questão de viver com as consequências dessa decisão. Acredito que, num contexto como este, é mais interessante aprender e crescer com as diferenças e surpreendentes similaridades para com a nossa cultura. Em vez de ficar a contar os dias até voltar para casa e ficar deprimido, achei muito mais fácil e divertido tentar compreender e integrar-me na cultura britânica como uma forma de ganhar perspectiva em relação à minha cultura, a  portuguesa. Tive saudades de algumas das coisas portuguesas, claro, mas a magnitude desta experiência depressa mitigou qualquer nostalgia.

 

 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

A ciência portuguesa tem uma qualidade surpreendente para o nível de investimento e atenção que recebe. Infelizmente, muita dessa ciência feita por portugueses não é feita em Portugal. A progressão tem sido estável e animadora desde o início dos anos 90, fruto da lucidez de alguns governos nessa década, que apostaram no investimento público na ciência e educação como motor de progresso a longo prazo. Foi um investimento que claramente deu resultados, quiçá melhores até do que o esperado, mas que infelizmente está a ser completamente desaproveitado por falta de continuidade nesse tipo de políticas nos últimos anos.

Como produto do investimento no ensino público português na década de 90, fico desiludido e um pouco revoltado de cada vez que vejo uma regressão nas mesmas políticas que, de certa forma, me trouxeram até aqui. Sempre que a economia nacional se revela débil, a educação é sempre a primeira a ser sacrificada quando devia ser o contrário. Quebram-se frágeis ciclos ao primeiro sinal de pânico dos "mercados" e em meses destrói-se o investimento de anos em exercícios de futilidade económica e preocupante miopia social a longo prazo. Portugal investiu muito e bem em ciência e educação durante anos mas esse investimento não foi acompanhado por uma evolução social e industrial que conseguisse acomodar os primeiros frutos. Como tal, muita da excelente ciência portuguesa está limitada às universidades e afecta às parcas condições que estas conseguem oferecer. Aos outros resta apenas a imigração como alternativa. O cientista português tem que ser visto como um profissional legítimo e tratado como tal. As condições laborais a que os cientistas nacionais estão hoje sujeitos são preocupantes, no mínimo, e desencorajam qualquer um a entregar-se de corpo e alma à actividade em território nacional.

 

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

A visibilidade e perspectiva do panorama científico português no mundo. Acho que a ciência em Portugal ainda sofre por falta de divulgação. Por muito que tenhamos evoluído nos últimos anos, acredito que ainda há muito caminho para trilhar à nossa frente nesse aspecto. Além disso, a natureza incerta da actividade introduz um nível de mobilidade raro na maioria das profissões. O GPS pode assim funcionar como um agregador de conhecimento nesse sentido, o que é muito mais do que ser apenas mais uma rede social, algo que acho redundante nos dias de hoje.

 

Consulte o perfil de Ricardo Almeida no GPS – Global Portuguese Scientists.

 

GPS/Fundação Francisco Manuel dos Santos


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