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Mais serotonina, menos motivação? Depende das circunstâncias

15 Fev 2017 - 11h15 - 7.779 caracteres

Novo estudo em ratinhos mostra que o aumento de serotonina, uma das principais moléculas mediadoras da comunicação cerebral, influi sobre a motivação – mas só às vezes. Além disso, este estudo revelou que os efeitos de níveis aumentados de serotonina a curto e longo prazo são opostos, uma propriedade totalmente inesperada do sistema funcional deste neurotransmissor.

 

Um efeito surpreendente no comportamento de ratinhos, descoberto por neurocientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, sugere fortemente que a serotonina está envolvida num mecanismo biológico que afeta a motivação dos animais. O trabalho acaba de ser publicado na revista online de acesso livre eLife.

A serotonina é um dos “mensageiros” químicos, ou neurotransmissores, utilizados pelos neurónios para comunicar entre si. Sabe-se ainda que desempenha um papel importante no controlo do sono, do movimento e de outros comportamentos cruciais para a sobrevivência dos animais, mas em particular, a existência de um efeito na motivação não era clara.

Os neurónios que produzem serotonina localizam-se em estruturas celulares do tronco cerebral (a parte mais “primitiva” do cérebro em termos evolutivos), chamadas “núcleos da rafe.” Como estes neurónios projetam os seus axónios para múltiplas regiões cerebrais, a serotonina atua à escala do cérebro. Após a sua libertação pelos neurónios dos “núcleos da rafe”, esses mesmos neurónios reabsorvem a serotonina em excesso.

Como os défices de serotonina no cérebro estão associados à depressão, são utilizados, para tratar os sintomas depressivos, medicamentos ditos “inibidores seletivos da recaptação da serotonina” (ISRS), dos quais o mais conhecido é o Prozac – e que fazem justamente aumentar os níveis cerebrais de serotonina ao impedirem a absorção do excesso de serotonina.

No entanto, ninguém sabe ao certo de que forma um excesso de serotonina permite, em termos biológicos, aliviar os sintomas depressivos. O inédito efeito agora revelado pela equipa de neurocientistas do Centro Champalimaud poderá fornecer pistas para esclarecer esta questão.

 

“Picos” de serotonina

Até recentemente, estudar os mecanismos de ação da serotonina era algo muito difícil uma vez que não existiam formas rápidas e específicas de olhar para o comportamento de ratinhos ao mesmo tempo que a produção deste neurotransmissor era estimulada nos seus cérebros. Mas hoje em dia, graças à técnica chamada optogenética, na qual é utilizada luz para manipular (estimular ou silenciar) neurónios, tornou-se possível observar o impacto de uma manipulação neuronal no comportamento destes animais.

Recorrendo à optogenética, o que os cientistas fizeram foi estimular a produção de serotonina pelos “núcleos da rafe” no cérebro de ratinhos. Começaram por provocar “picos” de serotonina ao estimularem a sua produção com pulsos de luz de três segundos a cada dez segundos, durante três intervalos de cinco minutos cada.

Os ratinhos, colocados numa caixa, eram livres de explorar o seu ambiente. Nestas condições, os comportamentos espontâneos mais frequentes destes animais são andar, erguer-se nas patas traseiras, limpar-se, cavar buracos ou ficar relativamente parados, mas alertas.

A única diferença que os cientistas observaram foi que os ratinhos, ao serem estimulados, reduziam em cerca de 50% a velocidade de locomoção. Verificaram ainda que esta estimulação dos neurónios produtores de serotonina não afetava, em geral, outros comportamentos.

O efeito destes “picos” de serotonina sobre a locomoção era quase imediato (um segundo após a estimulação dos neurónios produtores de serotonina) e transitório, isto é, tudo regressava à normalidade passados cinco segundos. Mas durante esse curto intervalo, “os animais agiam como se estivessem desmotivados”, diz Zach Mainen, que liderou o estudo.

Porém, a estimulação só afetava a velocidade de locomoção dos ratinhos se não estivessem empenhados nalguma tarefa particularmente motivadora. “Com estimulações, os animais reduzem a sua atividade motora, mas unicamente quando estão a explorar um ambiente novo sem ‘objetivos’ associados”, explica a coautora Patrícia Correia, que realizou as experiências e que, com o seu colega (e também coautor) Eran Lottem, analisou os resultados. “Já a mesma estimulação não tem qualquer efeito se o animal estiver concentrado numa tarefa específica como, por exemplo, a correr para obter uma recompensa. O nosso estudo revela que a serotonina tem um efeito direto na locomoção/exploração e eventual motivação do animal.”

Os cientistas mostraram ainda que o abrandamento dos animais não se deve a um aumento dos seus níveis de ansiedade – algo que poderia constituir um forte incentivo à inibição do movimento. “Trata-se de outra componente motivacional, que não é a ansiedade, nem tão pouco a expectativa de uma recompensa, uma vez que os animais não procuram ser estimulados”, explica Zach Mainen.

 

Segundo efeito

O passo seguinte foi determinar o que aconteceria se estimulassem os neurónios produtores de serotonina de forma repetitiva ao longo de um período de tempo mais longo.

Para isso, uma segunda série de experiências consistiu numa estimulação diária dos ratinhos durante 24 dias consecutivos.

E foi aí que surgiu a surpresa: mesmo que cada estimulação pontual fizesse diminuir transitoriamente a velocidade de locomoção, globalmente ela ia aumentando, sendo que, ao fim de pouco mais de três semanas, ela situava-se 30% a 40% acima do que era no início desse período.“Este efeito de longo prazo deixou-nos completamente surpreendidos.”, diz Zach Mainen.

“A estimulação prolongada desencadeou um segundo efeito. Os ratinhos ficaram globalmente mais ativos”, explica Patrícia Correia.

Este segundo efeito “é uma bizarra mas importante propriedade do sistema da serotonina”, diz Zach Mainen. “Não sabemos o que significa em termos de depressão, mas a motivação para se movimentar poderá estar relacionada com um estado de apatia."

A existência deste segundo efeito, associado ao aumento prolongado dos níveis de serotonina no cérebro, poderá ainda permitir explicar por que os antidepressivos ISRS demoram cerca de três semanas a atuar. “Os ISRS atuam em parte no sistema da serotonina – e talvez o efeito a longo prazo que agora descobrimos tenha a ver com esse período de latência”, conclui Zach Mainen.

 

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